sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Entendendo a crise na Síria

Para uns, o ocidente está tentando derrubar um governo democraticamente eleito num país do oriente médio, para outros, mais um povo árabe está clamando por liberdade e entre esses dois grupos existem uma série de outros com suas próprias versões do conflito. Muita desinformação e opiniões fundadas em emoções e achismos são passadas em diversas redes sociais, blogs e páginas de ideologias, por isso eu vou (tentar) explicar o conflito aqui.

Um pouco da história do país:


A Síria foi um dos berços mais antigos da civilização no mundo. A cidade escavada de Ebla, descoberta em 1975, foi fundada provavelmente em 3000 ac e com seu crescimento, fez parte de um grande império semita que existiu na região entre 2500 e 2400 ac. Presentes de faraós encontrados na cidade mostram que havia contato com o império egípcio. A região foi conquistada em 2260 ac pelos amorreus, depois hititas, cananeus, arameus, foi dividida por vários povos até que foi completamente conquistada pelos persas, depois pelos macedônios em 83 ac caiu sob domínio armênio e finalmente em 64 ac se tornou uma província romana.

Em 640 dc a região foi anexada ao império islâmico, Damasco chegou a ser a capital do mesmo e houve um período de prosperidade, com uma boa tolerância aos cristãos inclusive. Depois seguiram uma série de revoltas por causa de totalitarismo e corrupção de uma era e finalmente um novo governo islâmico se estabeleceu, com capital em Bagdá.Depois disso a Síria enfrentou os cruzados, os mongóis, por um exército mameluco, mongóis de novo até que em 1516 foi anexada ao império Otomano.

Com o fim da 1ª guerra mundial a Síria foi passada para a França e Grã-Bretanha. Em 1946 ela conseguiu sua independência, de lá até cá, meteu-se em uma série de guerras com Israel e tentou diversas vezes se fundir com outras nações árabes.

O que importa:


Em 58 ela se uniu ao Egito formando a República Árabe Unida, só para em 61 se separar por meio de um levante militar. Em 63 o poder foi tomado pelo partido Ba'ath, que implantou uma série de reformas e passou a denominar a Síria de República Popular da Síria. Em 71 Hafez al-Assad, gozando se posição importante no Ba'ath dá um golpe dentro do partido e assume o poder do país, no qual fica até 2000, quando morre. Quem assume então é seu filho Bashar al-Assad, eleito em um referendo. Ele era o único candidato.

Outro ponto importante à se notar é que em 1980, Hafez al-Assad assinou um tradado de cooperação com a URSS, sendo nomeado representante de assuntos soviéticos na região e recebendo armamento moderno da potência comunista.

Agora sim, como tudo começou:


Com a mudança de governo, foi esperado algumas reformas democráticas, mas elas não aconteceram. Ele manteve um discurso reformistas, para agradar os EUA e as potências europeias, mas na prática nada cedeu à oposição. Em 2007 foi reeleito, mas novamente foi o único candidato...

Com o início da "primavera árabe", 14 adolescentes foram presos e supostamente torturados, na cidade de Daraa, ao sul da Síria, por escreverem em um muro um slogam em apoio às revoltas do Egito e da Tunísia. Nessa cidade então ocorreu a primeira manifestação pedindo não a queda do ditador, mas sim reformas democráticas.

Porém, como a resposta do governo foi dura (forças de segurança abrindo fogo contra manifestantes) as manifestações passaram a exigir a deposição de al-Assad. Houve algumas concessões deste, como promessa do fim do estado de emergência (que dura já durou 48 anos!) e eleições multipartidárias. Mas isso não adiantou, as manifestações continuaram, a repressão aumentou e enfim estourou a guerra civil.

E agora?


Da "primavera árabe" o conflito na Síria é o que tem mais se estendido. A cada dia que passa a tendência é que a guerra civil se torne mais brutal, que cada vez mais inocentes sofram as consequências dos embates e que a quantidade de atrocidades cresçam de ambos os lados. Esse tipo de conflito é "pessoal" demais, existe um grande número de combatentes não profissionais, não há uma centralização de comando nem mesmo do lado de al-Assad (as milícias leais à ele combatem como bem entendem). A selvageria dos combates e as perdas estão tornando cada vez mais ambos os lados intolerantes e perversos. Isso já aconteceu em outras revoluções e não vai deixar de acontecer nessa.

A liga árabe, que manteve-se neutra de início, já se posicionou contra al-Assad. Ela já impôs sanções ao país por ter impedido a entrada de seus observadores e agora mantém um contingente por lá. Ela também suspendeu a Síria, até que a violência diminua e a situação se estabilize.

Quanto ao resto da comunidade internacional existe um grande impasse: EUA e as potências europeias apoiam o fim do regime, Russia e China apoiam a continuidade de al-Assad. Como esses últimos países são membros permanentes do conselho de segurança da ONU e tem direito à veto, todas as tentativas de sanções internacionais foram vetadas.

Interesses? Tirando o lado humanístico, que por moda muitos negam que existe, mas existe (sim, a maior parte da população do EUA, informada sobre a questão, quer que acabe logo o conflito e o sofrimento do povo Sírio, a maior parte dos europeus também, dos russos e chineses também), a maior parte do mundo quer logo que a situação do país se estabilize o quanto antes, afinal temos aqui um produtor de petróleo, uma guerra civil leva a destruição de poços, oleodutos, redução na produção e exportação, aumento de preço... não, isso não afeta só os "grandes produtores e industriais", afeta o caminhoneiro, a motorista de van escolar, o taxista, o verdureiro, o preço da passagem de ônibus...

EUA, Israel e UE vêem com certa esperança a queda do regime de al-Assad, que era um apoio forte do Irã. China e Russia no entanto lutam para manter sua zona de influência. A China ainda é uma das principais fornecedoras de armas no conflito.



Alguns mitos:


Aqui vão alguns mitos ditos em redes sociais e páginas partidárias:

Bashar al-Assad foi eleito democraticamente, a maioria aprovou sua candidatura, seu governo é legítimo?


De fato, na reeleição de 2007 ele obteve 97% de aprovação. No entanto, não havia outro candidato, sequer outro partido concorrendo. Nos governos militares daqui, haviam pelo menos candidatos de dois partidos concorrendo. Se isso é legítimo é legitimidade pela coação e força.

Historicamente a maioria da população de qualquer país nunca é a favor de mudanças bruscas, como são as revoluções. Essa massa não age assim por tomar posição ao lado do regime vigente e sim por não gostar de ter seu modo de vida remexido, por ter que correr os riscos que uma guerra civil implica. A maioria da população não vai assumir, ou lutar, por nenhum dos lados da guerra civil, nem contra uma intervenção estrangeira, nem contra zumbis, alienígenas e o que mais for.

Agora a parcela "politicamente ativa" da população, bem, essa é grande o suficiente para que os combates entre as forças de segurança somadas as milicias pró-Assad e os rebeldes sejam tão equilibrados a ponto da guerra se arrastar por mais de um ano, sem nenhum dos dois lados dar sinais que está cedendo.

Isso mostra que os rebeldes não são uma minoria querendo tomar o poder, são fortes o suficiente para enfrentar o estado e todo seu aparato e se manterem de pé por mais de ano.

De fato, não se pode associar al-Assad com a maioria síria, que é sunita, enquanto seu regime favorecia a minoria alauita.

Os rebeldes são desorganizados e se não houver intervenção eles vão ser massacrados:


Existem grupos rebeldes organizados, tanto na política, que são os partidos clandestinos "conselho nacional sírio" de orientação religiosa e apoiado pela irmandade muçulmana e o "comitê de coordenação nacional", que são opositores de al-Assad que temem a orientação religiosa do CNS.

Militarmente existe o exército livre da síria, que é quem coordena os ataques contra as forças de segurança.

Evidentemente não se pode esperar a organização de um exército nacional, mas vale notar que mesmo as forças de segurança agem sem muita coesão. O treinamento das forças do estado não é muito melhor do que os dos rebeldes e ambos os lados tem sérios problemas logísticos, agravados cada vez mais pela deteoriração do país.

Culpa do imperialismo do EUA?


Imperialismo? Sim, apesar de não gostar dessa palavra, que parece ter significado mutável de acordo com ideologias... do EUA? Não... É incrível, mas tem site de partidos que passam notícias sobre o conflito tão distorcidas, mas tão distorcidas a ponto de chamar o baa'th de partido de direita e dizer que o regime do mesmo é pró-israel disfarçado!

Todas essas ditaduras que estão caindo na primavera árabe foram colocadas por uma das duas grandes potências da guerra fria, EUA e URSS. A da Síria foi colocada e apoiada pelo lado vermelho. Ou seja, nesse caso, imperialismo soviético.

Intervenção internacional só piorariam as coisas?


Depende. Se a intenção é diminuir o nível de violência e salvaguardar a parcela da população que, até pode ser favorável ideologicamente à uma das partes do conflito, mas que não pegou e nem pegará em armas e não se importa mais com o rumo político de seu país do que com o conforto e segurança de suas famílias, a adição de uma força organizada, composta por bem treinados soldados profissionais pode sim ser interessante. Essa força não estaria psicologicamente desgastada com o conflito e demoraria mais para sofrer tal desgaste. Ela responderia à comunidade internacional e portanto estaria sob uma fiscalização mais rígida e clara. Seus soldados, por não estarem ideologicamente e emocionalmente enjangados em nenhuma dos lados e isso evitaria, por exemplo, que crianças fossem fuziladas por pertencerem à família de "al-fulano", partidário de "al-ciclano". Além disso essas forças levariam equipes médicas e humanitárias e suprimentos onde hoje nem se sonha levar.

No entanto uma intervenção estrangeira pode acabar com o clima de mudança no país. A "revolução" poderia acabar perdendo a identidade. Isso pode parecer mesquinho, mas não é: se o povo sírio derruba al-Assad numa guerra civil sanguinolenta, mesmo que o governo que venha depois seja uma ditadura esta será menos repressora que o governo anterior. A população também saberá que pode ditar seu rumo, se não gostar de como está sendo governadas. É um derramamento de sangue que poderá evitar muitos outros no futuro. Existe ainda a questão de como a intervenção poderá vir ser interpretada, há um bom risco dela ser vista como invasão e isso fomentar ainda mais o terrorismo.

***

A primavera árabe e por conseqüência a revolução na Síria são o fim de um dos resquícios da guerra fria, quando as duas grandes potências brigavam para colocar governos fantoches na região, de modo a terem trampolins para tomar zonas petrolíferas em caso de um conflito mundial. Com a queda da União Soviética, tais governos deixaram de ser interessantes e de receber ajuda, isso somado à um maior acesso à informação por parte dos povos da região causaram a instabilidade que estamos assistindo. A esperança é que apesar de todo o sangue derramado a humanidade é que vença e que tempos melhores venham para a região.

4 comentários:

LUCAS FELIPE disse...

acredito que mais uma intervenção militar não seja benefica em nenhuma circuntancia, ja que provou se com as passadas que uma força estrangeira torna a area mais sucinta a terrorismo e vandalos, e outra nunca se conseguiu um respeito por parte das tropas invasoras aos direitos e costumes locais como por exemplo soldados "bem treinaados" americanos urinando sobre cadaveres islamicos,
ora, vejamos que ultrajante pode ser a um povo, esse tipo de barbarie, bem treinados sim na forma militar porem , barbaros e indubeis psicologicamente falando.
imagino eu se fosse aqui n brasil uma invasão estrangeira como nos sentiriiamos.

Möller disse...

Isso é generalização lucas. O Nível de violência contra populares, em conflitos externos é em geral, relativamente menor do que em conflitos internos (sic Quincy Wright). Além disso intervenção externa não significa intervenção norte-americana. O ideal seria uma tropa internacional, como os capacetes azuis, que poderiam contar inclusive com efetivo brasileiro.

Quanto à acusação de "barbarismo" das forças norte americanas, acho isso equivoco seu. De acordo com estudos militares sobre a doutrina de ocupação norte-americana, histórico de suas ocupações, dados externos e etc, eles são uma das forças que mais busca o contato e a aproximação da pop. civil. Uma das provas disso é exatamente você saber dos casos de barbárie. Quantos casos de brutalidade você soube dos russos na Geórgia? E do período que as tropas sírias estiveram no Líbano? As forças militares dos EUA são uma das mais efetivas em punir seus próprios militares. Aliás, sugiro que você pesquise sobre o general Petraeus (acho que é ele), que foi comandante das forças americanas e multinacionais no Iraque e que foi conhecido por sua intensa campanha de aproximação com o povo iraquiano.

A única vantagem de uma intervenção externa é, à curto prazo (até 10 anos) diminuir significativamente a violência local.

Möller disse...

Eu pessoalmente não defendo uma intervenção completa, mas uma ajuda aos rebeldes, como missões de bombardeio estratégico, auxílio de forças especiais e aconselhamento militar.

Rodrigo Jacques disse...

Legal seu post, deem também uma olhada no nosso post informal sobre a guerra no Oriente Médio http://nerdwiki.com/2013/11/21/saiu-ar-perdeu-o-lugar-arabes-vs-judeus/
Obrigado.