quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Trajes mecanizados: ... a realidade

As perspectivas sobre os trajes mecanizados, oferecidas pela ficção eram boas demais para que algo do tipo continuasse apenas como uma ideia. Na década de 60 militares norte-americanos em conjunto com a General Eletric começaram um projeto ousado: criar o primeiro traje mecanizado, o Hardiman.

Hardiman


A ideia:

Uma máquina que imite os movimentos de seu usuário, uma conexão da inteligência e versatilidade humana com a força e a resistência de uma máquina, como foi dito no "naval research reviews" de julho de 1967. A ideia já explorada e difundida pela ficção começou a ganhar forma com o projeto Hardiman: um par de exoesqueletos movidos por um sistema elétrico e hidráulico que tinha a capacidade de potencializar a força de seu usuário na proporção de 1 para 25, ou seja se um operador levantasse um peso de 100kg usando o traje ele sentiria como se fossem apenas 4kg.

O hardiman funcionava num sistema de mestre-escravo, por isso era necessário um par de exoesqueletos: em um ficava o operador, que fazia os movimentos que eram copiados pelo traje escravo. O fornecimento de energia vinha de um cordão umbilical o que não era necessariamente um problema, já que não se previsa seu uso direto em combate e sim em tarefas de material bélico, como o carregamento de bombas em aviões.

Concepção de uso: carregamento de bombas em aviões


A História:

O projeto Hardiman começa em novembro de 1965, quando uma junta do exército e marinha dos EUA assinam um contrato de desenvolvimento com a General Eletric. O principal objetivo do projeto era demonstrar o potencial dos trajes mecanizados e a exigência era de que o operador pudesse erguer uma carga de cerca de 680kg à uma altura de 1,82m. O operador ainda deveria poder andar, se inclinar, girar e etc. com o mínimo de restrições.

Os esforços iniciais se concentraram em estudos sobre a extensão do corpo humano: como deveriam ser as articulações do exoesqueleto e quais seriam os requisitos para o sistema de servo-mecanismos. Foram construídos modelos passivos que foram usados para determinar a disposição das articulações necessárias para possibilitar que o operador pudesse fazer movimentos naturais. 

Em 1968 todas as estruturas mecânicas do Hardiman estavam prontas, no entanto o desenvolvimento de um sistema puramente mecânico-hidráulico bilateral para o movimento dos trajes não havia progredido como o esperado. Estudos sobre o problema apontaram a necessidade de substituir o projeto de servos mecânicos-hidráulicos por eletro-hidráulicos.Com isso foi iniciado um programa de redesenho e substituição, em setembro daquele ano as pernas e o cinturão já haviam passado pelas alterações e em 69 todo o exoesqueleto já havia sido alterado e então foi dado início à um programa de testes.

Um modelo passivo


O Insucesso:

O Hardiman nunca conseguiu passar da fase de protótipo de testes. Seu grande peso, cerca de 650kg, sua velocidade limitada, 2,5m/s e a incapacidade de substituir a alimentação externa para uma interna foram certamente desvantagens, mas não pesaram para o fim do projeto.

A interface mestre-escravo demonstrou não ser a ideal para um traje mecanizado, a quantidade de camadas físicas entre o usuário e o traje escravo (que executava o trabalho de fato) gerava algum atraso, além de comprometer a precisão dos trabalhos, como o projeto visava exatamente aprimorar as interações homem máquina isso pesou bastante para o seu fracasso.

No entanto a razão principal do insucesso do Hardiman foi a incapacidade de fazer a máquina funcionar por completo. Qualquer tentativa nesse sentido fazia o traje agir de forma descontrolada e nunca conseguiram corrigir esse erro. Assim as pesquisas tiveram que se concentrar em movimentos isolados do braço.

Hardiman


O Legado:

Apesar do insucesso o Hardiman provou que os trajes mecanizados eram possíveis. Hoje, cerca de quadro décadas depois, EUA, Japão e França estão prestes a produzirem os primeiros modelos operacionais de tal tecnologia, sem dúvida a experiência fornecida pelo Hardiman foi crucial para isso.

Na próxima postagem (prevista para 08/09) veremos como anda a tecnologia nos dias atuais.


Fontes:
The story behind the real 'iron man' suit.
Cyberzoo
TR de julho de 1969
TR de maio de 1971




sábado, 18 de agosto de 2012

Trajes Mecanizados: Da ficção...

Como vimos, equipamentos que aumentam as habilidades de quem os usa já povoaram as lendas antigas. Na fantasia medieval, contos de cavalaria e até na recente literatura de "RPGs"¹ temos botas de velocidade, cinturões de força e capas de invisibilidade. Tais recursos sempre foram bons de serem explorados em histórias de ação, aventura e guerra e portanto, com o advento da ficção científica, não deixariam de serem usados. Todavia, para esse gênero, eles precisavam de uma explicação um pouco mais plausível e seus escritores abandonaram a magia e passaram a representa-los como máquinas. 

Serie Lensman:


O conceito de traje mecanizado não estava explicito na série de livros Lensman, do escritor doutor Edward Elmer Smith, mas os trajes espaciais da série continham escudos energéticos e outros aparatos que lembram a ideia de um traje mecanizado. Além disso em um dado momento da série, um traje é fabricado de modo que o mesmo possibilitou um personagem  sobreviver a um ataque maciço, dando a entender que a vestimenta tinha uma blindagem pesada demais para um humano comum conseguir suportar, mas ao mesmo tempo tinha algum sistema que dava liberdade de movimento ao seu usuário.

Audiobook do livro 2 da série Lensman: The First Lensman

Tropas Estelares:

Nesse romance de Robert A. Heinlein o traje mecanizado aparece explicitamente. Na verdade o traje da infantaria móvel (IM) é quase um protagonista e boa parte do livro fala sobre ele. Em Tropas Estelares os soldados da I.M. são a supremacia em combate, eles tem a mobilidade e proteção da cavalaria, com a pessoalidade da infantaria, graças aos seus trajes mecanizados. Estes contavam com uma série de sensores de pressão que captavam o movimento do usuário e o traje reproduzia com mais força. Além disso, os trajes contavam com jetpack, sonar, visor noturno, "depósito de armas" e proporcionavam uma formidável proteção extra.


Uma das capas de Tropas Estelares

O modelo de tropas estelares serviu de inspiração para uma grande gama de outras obras, desde Warhammer 40k até o Homem de Ferro, todos usam como base os trajes lançados na ficção por Heinlein.

Bioarmaduras:

Bioarmaduras são uma versão "biológica" dos trajes mecanizados e que só existem no mundo fictício. Foram usadas em obras como o livro Fallen Dragon de Peter F. Hamilton, o "comic book" X-O Manowar de Jim Shooter e o mangá Bio Booster Armor Guyver. Aqui no Brasil a "bioarmadura" dos universos de RPG Tormenta e Invasão é a mais conhecida.


Uma bioarmadura é descrita como uma criatura simbionte, que reveste o hospedeiro oferecendo todos os benefícios de um traje mecanizado (aumento de força, velocidade e proteção). Teria a vantagem sobre o traje comum por estar sempre com o seu usuário podendo ser acionada quando conveniente. Além disso a maior parte dos ganhos em força e velocidade estariam associados à mudanças na estrutura biológica de quem hospeda uma bioarmadura do que pela estrutura da coisa em si

Bioarmaduras em um livro de RPG da série Tormenta


Nanoarmaduras:

Apesar das vantagens das bioarmaduras é pouco provável que elas deixem a ficção. O esforço para desenvolver tal tecnologia seria grande demais e os resultados poderiam ser substituídos com ganho pela nanotecnologia.

No jogo Crysis os membros das forças especiais do EUA usam trajes que proporcionam aumento de força, velocidade, proteção e invisibilidade. O "nanosuit" lembra pouco o traje mecanizado convencional, uma grande armadura com servomotores, ao invés disso se parece com uma roupa fibrosa, feita de uma liga molecular. O aumento de força e de velocidade também é feito de forma diferente: nanopartículas são absorvidas pelo usuário e estas estimulam o trabalho muscular, respiratório e cardíaco do mesmo.

Enquanto bioarmaduras estão longe de se tornarem reais, nanoarmaduras podem entrar em cena nos campos de batalha ainda neste século.

Nanosuit de Crysis

Quase mágicas:

A ficção atual produziu trajes mecanizados que nada devem às armaduras mágicas da antiguidade. Vestimentas anti-gravitacionais em Perry Rhodan, os Chrono Commando de Command and Conquer assustariam até mesmo Thor com seu cinto de força. As tentativas de explicar o fornecimento de energia dos trajes também ainda estão além do alcance de nossa ciência atual, em fallout por exemplo, a armadura é alimenta por uma pilha de fusão nuclear!


Quase reais:

Os escritores, desenhistas e game-designers nunca explicaram de fato como funcionava suas criações, nem era possível que fizessem, mas conseguiram inspirar gerações de engenheiros à passar para a realidade tal conceito. Além disso com uma ideia ou outra eles conseguiram pincelar um pouco o futuro dessa tecnologia. Heinlein, sem dúvida, foi o que mais contribuiu, passando não só as vantagens dos trajes como uma possível doutrina de uso.


Não é atoa que após a publicação de tropas estelares o primeiro projeto real de traje mecanizado foi conduzido nos EUA.

Na próxima postagem: Trajes Mecanizados: ... a realidade, vamos abordar o projeto hardiman.

domingo, 12 de agosto de 2012

Trajes Mecanizados: O conceito.

"Um traje não é um traje espacial - embora possa servir como um. Não é primariamente uma armadura - embora os Cavaleiros da Távola Redonda não estivessem tão bem blindados como nós. Não é um tanque - mas um só soldado IM. poderia enfrentar um esquadrão daquelas coisas e acabar com elas sem ajuda se alguém fosse tolo o bastante para colocar tanques contra IM. Um traje não é uma nave mas pode voar,
 um pouco - por outro lado, nem naves, nem aeroplanos podem lutar contra um homem num traje exceto por bombardeio de saturação da área onde ele se encontra (como queimar uma casa para pegar uma pulga!). Inversamente, podemos fazer muitas coisas que nenhuma nave - no ar, na água ou no espaço podem." (Tropas Estelares)


Foi com essas palavras que Robert A. Heinlein descreveu o traje mecanizado, em seu romance intitulado "tropas estelares", em 1959. A ideia de uma vestimenta que não só fornecesse uma defesa favorável ao seu usuário, como também potencializasse  sua força e agilidade porém é bem antiga.


Uma das capas do livro "tropas estelares"



Armaduras Mágicas:


Em diversas culturas existem lendas que falam de peças de armaduras que davam muito mais do que uma proteção extra à seu usuário. O cinturão de Thor (bem... isso não é bem uma armadura) dobrava a força do deus, o Tarnhelm, também da mitologia nórdica/germânica, possibilitava seu dono mudar de forma e até ficar invisível tal qual o elmo da escuridão de Hades. O escudo de Lancelot o curou instantaneamente em um episódio e lhe dava a força de três homens! Há outras vestimentas que também davam poderes incríveis à seus usuários como as sandálias de mercúrio que tinham asas e as botas de sete-léguas e a invulnerável armadura de Aquiles.

Aumento de força, super-camuflagem, aumento de mobilidade, defesa extrema, desde muito o imaginário do homem foi povoado por itens que pudessem transformar o comum em um grande guerreiro e verdadeiros heróis em máquinas lendárias de combate. Assim, com as revoluções industriais e o surgimento de máquinas que facilitavam o trabalho e possibilitavam que um homem sozinho fizesse o serviço de outros trinta, não é de se espantar que tais idéias começassem a deixar o mundo das lendas...

Os precursores:

Em 25 de julho de 1889, o inventor russo Nicholas Yagin enviou ao escritório de patentes dos Estados Unidos da América um pedido de patente de um "aparato para facilitar a caminhada, corrida e salto". O aparelho agia passivamente, armazenando a energia do movimento das pernas do próprio usuário, aplicando-a nos momentos devidos. Essa estranha geringonça não era um traje mecanizado propriamente dito, uma vez que não fornecia energia extra ao seu usuário e não tinha motor próprio.



Figura retirada da carta patente
Em 1917 foi a vez de um norte-americano, Leslie C. Kelley, ajudar a tecnologia dos exoesqueletos a dar seus primeiros passos. Ele enviou um pedido de patente de sua máquina chamada "pedomotor". Tal invento também utilizava um "motor à vapor" e ligamentos paralelos à musculatura do usuário para amplificar o poder de corrida do usuário.


Figura retirada da carta patente
O que seria então um traje mecanizado?

Nem o pedomotor, nem o aparato para facilitar a caminhada, a corrida e o salto foram trajes mecanizados propriamente ditos. Sendo assim, o que seria um traje mecanizado?

Um traje mecanizado é uma vestimenta que acompanha os movimentos de seu usuário e os potencializa, por meio de motores localizados e um suprimento próprio de energia. Sendo assim, o "aparatus" por depender da energia gerada pelo movimento de seu usuário, não é nem parte de um traje mecanizado, já o pedomotor não acompanha a movimentação de quem o veste, sendo limitado à corrida e a caminhada, não podendo ser usado para chutes, saltos e dependo de uma partida do motor.

Um traje mecanizado basicamente consiste de um conjunto de sensores, para avaliar o movimento realizado pelo seu usuário, uma central de processamento, para analisar a intensidade do movimento e comandar os motores que irão intensificar as ações de quem o comanda.

Basicamente um traje mecanizado proporciona aumento na força e velocidade de quem o veste, mas seus benefícios podem ser estendidos à proteção extra, tanto física quanto QBN (química, biológica e nuclear), otimização dos sentidos (equipamentos de visão noturna embutidos, microfone de longo alcance...) e no futuro à camuflagem, podendo isolar o calor do usuário e do fornecimento de energia, dificultando o traje de ser captado em equipamentos de infravermelho, tratamento contra ruídos, tornando sua operação silenciosa e até um sistema de "mesclagem", dando-o a capacidade de ter uma pseudo-invisibilidade.

Exoesqueleto norte-americano XOS


Mechas e bípedes:

Enquanto já existem protótipos até de trajes mecanizados, um mecha é um conceito que por enquanto meramente ficcional. No entanto quando nos referimos ao primeiro, para muitas pessoas a imagem que é remetida é do segundo.

O termo "mecha" aqui, apesar de ter sido pego emprestado do universo de animes e tokusatus, não se refere à robôs gigantescos tripulados. Mas sim máquinas humanoides, não tão grandes assim, tripuladas. Ok, ainda não está fácil fazer a distinção do "mecha possível" do "fictício" e do exoesqueleto, então vamos tentar novamente: Um mecha possível não é um robô de tamanho absurdo e sem sentido, e sim uma plataforma de armas que usa pernas mecânicas para se locomover (meio que teoricamente daria maior mobilidade em terrenos irregulares, cheios de entulho, estreitos...) e braços mecânicos armados. Diferente de um exoesqueleto, um "mecha" não é uma "vestimenta", o seu operador teoricamente ficaria em um cockpit. Um mecha também não tem o compromisso de amplificar os movimentos do seu usuário:  as pernas mecanizadas podem fazer apenas movimentos pré-programados sem se importar com o movimento das pernas do piloto e os braços mecanizados, que não são obrigatórios, podem ser operados como um braço robótico normal, podendo ter inclusive menor grau de liberdade que um braço humano.

Ou seja, basicamente a diferença entre um traje mecanizado e um "mecha", é que o segundo precisa de uma programação para seus movimentos e o primeiro não, quem faz o movimento é o usuário e o traje só potencializa. Por causa dessa característica inclusive, um traje mecanizado pode ser usado para a recuperação de uma pessoa com deficiências, enquanto um "mecha" não.

Kuratas, um "mecha" japonês. Apenas entretenimento.


O Futuro da guerra:

Soldados se correndo dezenas de quilômetros por hora, saltando alturas incríveis, completamente imunes aos calibres anti-pessoais convencionais e com força sobre-humana. Essas "armaduras mágicas" modernas que prometem revolucionar o campo de batalha, parecem coisa de filme. De fato a ficção explorou muito os trajes mecanizados. Confira nossa próxima postagem: saindo da ficção.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Entendendo a crise na Síria

Para uns, o ocidente está tentando derrubar um governo democraticamente eleito num país do oriente médio, para outros, mais um povo árabe está clamando por liberdade e entre esses dois grupos existem uma série de outros com suas próprias versões do conflito. Muita desinformação e opiniões fundadas em emoções e achismos são passadas em diversas redes sociais, blogs e páginas de ideologias, por isso eu vou (tentar) explicar o conflito aqui.

Um pouco da história do país:


A Síria foi um dos berços mais antigos da civilização no mundo. A cidade escavada de Ebla, descoberta em 1975, foi fundada provavelmente em 3000 ac e com seu crescimento, fez parte de um grande império semita que existiu na região entre 2500 e 2400 ac. Presentes de faraós encontrados na cidade mostram que havia contato com o império egípcio. A região foi conquistada em 2260 ac pelos amorreus, depois hititas, cananeus, arameus, foi dividida por vários povos até que foi completamente conquistada pelos persas, depois pelos macedônios em 83 ac caiu sob domínio armênio e finalmente em 64 ac se tornou uma província romana.

Em 640 dc a região foi anexada ao império islâmico, Damasco chegou a ser a capital do mesmo e houve um período de prosperidade, com uma boa tolerância aos cristãos inclusive. Depois seguiram uma série de revoltas por causa de totalitarismo e corrupção de uma era e finalmente um novo governo islâmico se estabeleceu, com capital em Bagdá.Depois disso a Síria enfrentou os cruzados, os mongóis, por um exército mameluco, mongóis de novo até que em 1516 foi anexada ao império Otomano.

Com o fim da 1ª guerra mundial a Síria foi passada para a França e Grã-Bretanha. Em 1946 ela conseguiu sua independência, de lá até cá, meteu-se em uma série de guerras com Israel e tentou diversas vezes se fundir com outras nações árabes.

O que importa:


Em 58 ela se uniu ao Egito formando a República Árabe Unida, só para em 61 se separar por meio de um levante militar. Em 63 o poder foi tomado pelo partido Ba'ath, que implantou uma série de reformas e passou a denominar a Síria de República Popular da Síria. Em 71 Hafez al-Assad, gozando se posição importante no Ba'ath dá um golpe dentro do partido e assume o poder do país, no qual fica até 2000, quando morre. Quem assume então é seu filho Bashar al-Assad, eleito em um referendo. Ele era o único candidato.

Outro ponto importante à se notar é que em 1980, Hafez al-Assad assinou um tradado de cooperação com a URSS, sendo nomeado representante de assuntos soviéticos na região e recebendo armamento moderno da potência comunista.

Agora sim, como tudo começou:


Com a mudança de governo, foi esperado algumas reformas democráticas, mas elas não aconteceram. Ele manteve um discurso reformistas, para agradar os EUA e as potências europeias, mas na prática nada cedeu à oposição. Em 2007 foi reeleito, mas novamente foi o único candidato...

Com o início da "primavera árabe", 14 adolescentes foram presos e supostamente torturados, na cidade de Daraa, ao sul da Síria, por escreverem em um muro um slogam em apoio às revoltas do Egito e da Tunísia. Nessa cidade então ocorreu a primeira manifestação pedindo não a queda do ditador, mas sim reformas democráticas.

Porém, como a resposta do governo foi dura (forças de segurança abrindo fogo contra manifestantes) as manifestações passaram a exigir a deposição de al-Assad. Houve algumas concessões deste, como promessa do fim do estado de emergência (que dura já durou 48 anos!) e eleições multipartidárias. Mas isso não adiantou, as manifestações continuaram, a repressão aumentou e enfim estourou a guerra civil.

E agora?


Da "primavera árabe" o conflito na Síria é o que tem mais se estendido. A cada dia que passa a tendência é que a guerra civil se torne mais brutal, que cada vez mais inocentes sofram as consequências dos embates e que a quantidade de atrocidades cresçam de ambos os lados. Esse tipo de conflito é "pessoal" demais, existe um grande número de combatentes não profissionais, não há uma centralização de comando nem mesmo do lado de al-Assad (as milícias leais à ele combatem como bem entendem). A selvageria dos combates e as perdas estão tornando cada vez mais ambos os lados intolerantes e perversos. Isso já aconteceu em outras revoluções e não vai deixar de acontecer nessa.

A liga árabe, que manteve-se neutra de início, já se posicionou contra al-Assad. Ela já impôs sanções ao país por ter impedido a entrada de seus observadores e agora mantém um contingente por lá. Ela também suspendeu a Síria, até que a violência diminua e a situação se estabilize.

Quanto ao resto da comunidade internacional existe um grande impasse: EUA e as potências europeias apoiam o fim do regime, Russia e China apoiam a continuidade de al-Assad. Como esses últimos países são membros permanentes do conselho de segurança da ONU e tem direito à veto, todas as tentativas de sanções internacionais foram vetadas.

Interesses? Tirando o lado humanístico, que por moda muitos negam que existe, mas existe (sim, a maior parte da população do EUA, informada sobre a questão, quer que acabe logo o conflito e o sofrimento do povo Sírio, a maior parte dos europeus também, dos russos e chineses também), a maior parte do mundo quer logo que a situação do país se estabilize o quanto antes, afinal temos aqui um produtor de petróleo, uma guerra civil leva a destruição de poços, oleodutos, redução na produção e exportação, aumento de preço... não, isso não afeta só os "grandes produtores e industriais", afeta o caminhoneiro, a motorista de van escolar, o taxista, o verdureiro, o preço da passagem de ônibus...

EUA, Israel e UE vêem com certa esperança a queda do regime de al-Assad, que era um apoio forte do Irã. China e Russia no entanto lutam para manter sua zona de influência. A China ainda é uma das principais fornecedoras de armas no conflito.



Alguns mitos:


Aqui vão alguns mitos ditos em redes sociais e páginas partidárias:

Bashar al-Assad foi eleito democraticamente, a maioria aprovou sua candidatura, seu governo é legítimo?


De fato, na reeleição de 2007 ele obteve 97% de aprovação. No entanto, não havia outro candidato, sequer outro partido concorrendo. Nos governos militares daqui, haviam pelo menos candidatos de dois partidos concorrendo. Se isso é legítimo é legitimidade pela coação e força.

Historicamente a maioria da população de qualquer país nunca é a favor de mudanças bruscas, como são as revoluções. Essa massa não age assim por tomar posição ao lado do regime vigente e sim por não gostar de ter seu modo de vida remexido, por ter que correr os riscos que uma guerra civil implica. A maioria da população não vai assumir, ou lutar, por nenhum dos lados da guerra civil, nem contra uma intervenção estrangeira, nem contra zumbis, alienígenas e o que mais for.

Agora a parcela "politicamente ativa" da população, bem, essa é grande o suficiente para que os combates entre as forças de segurança somadas as milicias pró-Assad e os rebeldes sejam tão equilibrados a ponto da guerra se arrastar por mais de um ano, sem nenhum dos dois lados dar sinais que está cedendo.

Isso mostra que os rebeldes não são uma minoria querendo tomar o poder, são fortes o suficiente para enfrentar o estado e todo seu aparato e se manterem de pé por mais de ano.

De fato, não se pode associar al-Assad com a maioria síria, que é sunita, enquanto seu regime favorecia a minoria alauita.

Os rebeldes são desorganizados e se não houver intervenção eles vão ser massacrados:


Existem grupos rebeldes organizados, tanto na política, que são os partidos clandestinos "conselho nacional sírio" de orientação religiosa e apoiado pela irmandade muçulmana e o "comitê de coordenação nacional", que são opositores de al-Assad que temem a orientação religiosa do CNS.

Militarmente existe o exército livre da síria, que é quem coordena os ataques contra as forças de segurança.

Evidentemente não se pode esperar a organização de um exército nacional, mas vale notar que mesmo as forças de segurança agem sem muita coesão. O treinamento das forças do estado não é muito melhor do que os dos rebeldes e ambos os lados tem sérios problemas logísticos, agravados cada vez mais pela deteoriração do país.

Culpa do imperialismo do EUA?


Imperialismo? Sim, apesar de não gostar dessa palavra, que parece ter significado mutável de acordo com ideologias... do EUA? Não... É incrível, mas tem site de partidos que passam notícias sobre o conflito tão distorcidas, mas tão distorcidas a ponto de chamar o baa'th de partido de direita e dizer que o regime do mesmo é pró-israel disfarçado!

Todas essas ditaduras que estão caindo na primavera árabe foram colocadas por uma das duas grandes potências da guerra fria, EUA e URSS. A da Síria foi colocada e apoiada pelo lado vermelho. Ou seja, nesse caso, imperialismo soviético.

Intervenção internacional só piorariam as coisas?


Depende. Se a intenção é diminuir o nível de violência e salvaguardar a parcela da população que, até pode ser favorável ideologicamente à uma das partes do conflito, mas que não pegou e nem pegará em armas e não se importa mais com o rumo político de seu país do que com o conforto e segurança de suas famílias, a adição de uma força organizada, composta por bem treinados soldados profissionais pode sim ser interessante. Essa força não estaria psicologicamente desgastada com o conflito e demoraria mais para sofrer tal desgaste. Ela responderia à comunidade internacional e portanto estaria sob uma fiscalização mais rígida e clara. Seus soldados, por não estarem ideologicamente e emocionalmente enjangados em nenhuma dos lados e isso evitaria, por exemplo, que crianças fossem fuziladas por pertencerem à família de "al-fulano", partidário de "al-ciclano". Além disso essas forças levariam equipes médicas e humanitárias e suprimentos onde hoje nem se sonha levar.

No entanto uma intervenção estrangeira pode acabar com o clima de mudança no país. A "revolução" poderia acabar perdendo a identidade. Isso pode parecer mesquinho, mas não é: se o povo sírio derruba al-Assad numa guerra civil sanguinolenta, mesmo que o governo que venha depois seja uma ditadura esta será menos repressora que o governo anterior. A população também saberá que pode ditar seu rumo, se não gostar de como está sendo governadas. É um derramamento de sangue que poderá evitar muitos outros no futuro. Existe ainda a questão de como a intervenção poderá vir ser interpretada, há um bom risco dela ser vista como invasão e isso fomentar ainda mais o terrorismo.

***

A primavera árabe e por conseqüência a revolução na Síria são o fim de um dos resquícios da guerra fria, quando as duas grandes potências brigavam para colocar governos fantoches na região, de modo a terem trampolins para tomar zonas petrolíferas em caso de um conflito mundial. Com a queda da União Soviética, tais governos deixaram de ser interessantes e de receber ajuda, isso somado à um maior acesso à informação por parte dos povos da região causaram a instabilidade que estamos assistindo. A esperança é que apesar de todo o sangue derramado a humanidade é que vença e que tempos melhores venham para a região.